“Na Vinícola Aurora não terceirizaremos mais trabalho temporário no período de safra”, diz presidente da cooperativa

Giampiero Rosmo
Giampiero Rosmo Giampiero Rosmo
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A maior cooperativa vinícola do país, com o maior faturamento entre as empresas do ramo da Serra, região que concentra a maior produção de vinho nacional, enfrenta também uma das maiores crises de sua história de 92 anos. Mas não é a primeira. É a mesma companhia que saiu de um endividamento que era superior a R$ 120 milhões em 1995 para um faturamento de R$ 756 milhões em 2022. Esta vinícola é a Aurora, que conta com 1,1 mil associados, e tem sede em Bento Gonçalves, o município que protagonizou neste mês um dos maiores resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão do país.

A Aurora, juntamente com Salton e Garibaldi, foi uma das três vinícolas que contrataram os serviços da Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, investigada por expor 207 trabalhadores à situação análoga à escravidão. As três vinícolas aceitaram assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) de R$ 7 milhões no âmbito trabalhista. Já na esfera criminal, a Polícia Federal disse que até o momento não viu responsabilidade das vinícolas.

Após o ocorrido, é a primeira vez que a Aurora concede uma entrevista para comentar o episódio. Até aqui, as manifestações ocorreram apenas por notas e carta aberta à sociedade com medidas a serem tomadas.

O porta-voz é Renê Tonello, presidente da cooperativa desde outubro de 2020. Ele também é produtor de uvas na Linha Buratti, em Bento Gonçalves. Em sua propriedade, são cultivadas variedades para a elaboração de suco, como isabel, bordô e carmem. Com 60 anos, é cooperado desde 1980, dando continuidade ao legado do avô, Antônio Guilherme Tonello, que já era sócio nos primeiros anos de fundação da Aurora, ainda na década de 1930.

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Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele comenta como a crise está sendo encarada como uma forma de implementar mudanças para que a situação nunca mais se repita. Entre elas, está a decisão da Aurora de não terceirizar mais trabalho temporário no período de colheita. Confira:

Qual está sendo o principal aprendizado desta crise?

Que todas as falhas, por mais dolorosas que sejam, são oportunidades para refletirmos e melhorarmos. Este foi um episódio que nos entristeceu profundamente porque falhamos com as pessoas. Não foi um investimento sem retorno, não foi um produto mal aceito pelo mercado. Foram pessoas. E como uma cooperativa, nada mais somos do que pessoas, seus valores e sua enorme capacidade de trabalho. Isso é a marca de nossa história quase centenária. E é por respeito a essa história, aos nossos associados, colaboradores e clientes que assumimos o compromisso de que isso nunca mais vai se repetir. Tenho certeza que sairemos dessa situação como uma organização ainda mais moderna, sustentável, inclusiva e com processos revitalizados.

Logo depois da operação, a Aurora destacou que não tinha conhecimento da situação dos trabalhadores resgatados. Por que não havia um trabalho mais próximo de acompanhamento da empresa terceirizada e o que mais surpreendeu?

Essa foi exatamente a falha no processo de acompanhamento da empresa terceirizada. Não ter havido um acompanhamento mais próximo da rotina dessa empresa em relação aos seus trabalhadores. É fundamental destacar que apoiamos de forma imediata e incondicional todas as investigações, que agora estão comprovando que não houve qualquer atitude deliberada de nossa parte. A própria Polícia Federal externou isso no curso das investigações.

A relação da Aurora e das outras vinícolas com essa empresa que trazia os trabalhadores é de muito tempo, não é de fevereiro deste ano. Em nenhum momento, nestes anos todos, houve suspeita por parte da vinícola? A empresa investigada, inclusive, foi autuada várias vezes por irregularidades trabalhistas…

Nunca tivemos conhecimento ou relatos, seja de trabalhadores, seja das autoridades, sobre situações como esta. Se tivéssemos qualquer indício, obviamente, teríamos tomado às providências. Como disse antes, nada é mais triste para uma cooperativa como a Aurora do que falhar com as pessoas. Quem conhece nossa trajetória entende muito bem nossa dedicação ao trabalho e o impacto social que nossa atuação tem na agricultura familiar, na geração de emprego e renda e no bem estar de nossa comunidade.

Dos 207 resgatados, 80 trabalharam na Aurora: qual era a função desempenhada, quanto tempo permaneciam por dia, em que período atuaram e o que recebiam no local de trabalho?

Eles prestavam apoio na área de descarga da safra de uva e, dentro das nossas instalações, recebiam tratamento igualitário, com acesso a todos os recursos necessários. A pergunta é importante para corrigirmos definitivamente uma informação que circulou de forma equivocada. Nenhuma daquelas cenas lamentáveis e revoltantes aconteceu nas instalações das vinícolas. Esta desinformação foi muito repetida e gerou uma generalização injusta. A honra e os valores de todo um povo que dignamente ganha seu sustento com o trabalho e promove o desenvolvimento regional e nacional, foram manchados.

A investigação apontou que as empresas repassavam ao Pedro Santana, dono da Fênix, em torno de R$ 6,5 mil, mas só chegavam cerca de R$ 2 mil para cada trabalhador. A cooperativa sabia desta diferença? Isso, na parte contábil da empresa, está ok?

O contrato de prestação de serviços terceirizados previa um pagamento bruto mensal, calculado em razão do número de trabalhadores envolvidos. Esse valor certamente deveria ser destinado ao pagamento dos salários e demais direitos dos trabalhadores contratados pela Fênix, bem como, para cobrir todos os outros custos inerentes à prestação do serviço terceirizado. Não tínhamos conhecimento a respeito do valor efetivamente repassado pela Fênix para cada um dos seus empregados. Quanto à questão contábil, a Cooperativa Aurora contabiliza regularmente todos os seus contratos.

Há previsão de impacto no faturamento deste ano?

É difícil prever isso de forma tão rápida. Vamos ter que avaliar ao longo dos próximos meses. Mas não é algo que nos preocupe neste exato momento. Agora nosso foco é cumprir com os compromissos que assumimos com a sociedade e com as autoridades no sentido de melhorar processos e incentivarmos cada vez mais uma cultura de tolerância, diversidade e cooperação.

Como a Aurora e seus mais de 1,1 mil cooperativados estão enfrentando esta crise que vai além de afetar a renda das famílias produtoras, mas impacta a imagem do principal polo de produção nacional de vinhos e da maior cooperativa vitivinícola do país?

Vamos trabalhar mais e melhor, reforçando os princípios do cooperativismo que nos trouxeram até aqui. Unidos e com muita disposição de continuar fazendo parte do dia a dia das famílias brasileiras com nossos produtos e nossos valores. O setor vitivinícola é um orgulho do Brasil. Com a disposição para implementar as mudanças necessárias, queremos seguir sendo referência de qualidade e desenvolvimento social, gerando empregos que sustentam milhares de pessoas e valorizando a agricultura familiar.

O que muda em relação à mão de obra para a colheita da uva na Serra a partir de agora? Como ela era feita antes da terceirização na Aurora e como serão as próximas safras?

Na Vinícola Aurora não terceirizaremos mais trabalho temporário no período de safra. E vamos implantar ações que assegurem que nossa cooperativa apenas se relacione com parceiros que compartilhem dos mesmos compromissos. Assinamos um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) que estabelece novos parâmetros para o trabalho no processo produtivo da uva e do vinho. Vamos aperfeiçoar os processos e mecanismos de fiscalização, realizar campanhas de conscientização e qualificarmos nossos associados para que saibam exatamente o que determina o TAC em relação à contratação e gestão da mão de obra. Esse treinamento junto aos produtores já está em preparação e agora, com o fim da safra, iniciaremos já no mês de abril essas orientações em cada um dos 20 núcleos, espalhados nos 11 municípios da Serra Gaúcha, que compõe o universo de associados da Cooperativa Aurora.

Como tornar a colheita mais atrativa tanto para empresas quanto para trabalhadores? Passa por revisão de legislação para contratações, melhor remuneração para trabalhadores e para os próprios produtores de uva e até mesmo reconhecimento do mercado do valor envolvido para a elaboração de um vinho?

Acho que todos esses fatores devem ser considerados. Penso que as ações com as quais estamos nos comprometendo, por si só, já qualificarão as relações de trabalho com aquelas pessoas que se dedicam à colheita da uva. Mas não queremos parar por aí. Queremos refletir sobre a valorização do trabalho e, especialmente, sobre a importância das pessoas neste processo. E tornar a colheita uma experiência positiva para todos. Esse período da safra é uma grande oportunidade para centenas de pessoas, que contam com estes recursos para sua subsistência. Muitas famílias dependem disso para sobreviver durante o ano.

Logo após o ocorrido, em uma carta aberta, a Aurora disse que já está trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da vinícola. Que ações já foram tomadas e o que mais é prioridade?

Logo que tomamos conhecimento dos fatos, rompemos qualquer vínculo com a empresa Fênix e passamos a trabalhar no restabelecimento dos direitos dos trabalhadores. Dois dias depois, assinamos um primeiro compromisso com o Ministério Público do Trabalho para garantir o pagamento de direitos, incluindo as verbas rescisórias. E, posteriormente, assinamos um novo TAC, que define os parâmetros de atuação de toda a cadeia produtiva. Paralelamente, demos início a um plano prioritário e emergencial que vai revisar e reforçar os mecanismos de compliance e integridade da empresa em relação à contratação de terceiros, além de voltarmos nossos olhos para um novo programa de ESG (do inglês Environmental, Social and Corporate Governance que significa ambiental, social e governança), com foco em sustentabilidade e responsabilidade social. Assumimos um compromisso com a sociedade brasileira e ele será cumprido e informado passo a passo.

Como a vinícola avalia a própria postura em relação a todo o ocorrido?

Estamos buscando agir de forma rápida para dar as respostas aos compromissos que assumimos. Humildemente admitimos a falha, rescindimos o contrato com a empresa Fênix, apoiamos as autoridades em suas investigações sobre o caso e fizemos um acordo com o MPT para restabelecer os direitos dos trabalhadores e garantir que isso nunca mais ocorra. Agora é hora de nos mobilizarmos em torno da mudança daquilo que precisa ser melhorado. Revisar e fortalecer os mecanismos de fiscalização e controle, as normas e processos internos e redimensionar o real valor do trabalho e a relação das pessoas com ele. O respeito ao próximo e o trabalho digno e colaborativo, que nos tornaram a maior cooperativa vitivinícola do Brasil, certamente nos levarão a um patamar ainda mais sustentável nestes próximos anos.

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